domingo, 30 de outubro de 2016

Mozart

Tu és inútil sem o álcool.
Tua obra divina
Não é dedicada ao físico.
Sois incompreensível
À carne.
Pobre carne que está
Condenada a ser prisão!
Não haverá e não deverá
Haver ouvidos materiais
Que te compreendam.
Nenhum animal te ouvirá
Realmente em vida.
Sois divino a ponto de
Não pertencer ao meu corpo.
Pobre de ti que não es
Efetivamente ouvido em vida.
Pobre de mim que só posso realmente ouvir-te
Ebrio ou, morto para a matéria.
Contente-se então, para compor
Para os que já morreram.
E eu esperarei a morte
Para ouvi-lo ou a fermentação do vital
Vinho.

(Escrito sobre os efeitos do álcool)

Sobretarde

Um dia sentar-me-ei
Numa cadeira,
Em minha varanda.
E um poema comporei
Como uma ciranda
Com rebuscadas palavras
De velha vaidade.
Coisas da idade
De quem quer exibir aos netos
A sua necessidade de
Afetos
E o orgulho de suas lavras.
Um dia assistirei, imovel,
O dia a dia e o andar apressado
Daqueles que inda não tem
O dever cumprido
E nem vislumbram a vida
Como passado.
Mas já constroem o remanso
E pressentem no futuro
Merecido descanso.
Um dia não serei necessário.
Já não me farão arrimo.
Serei peça de relicário,
Repositório de um nome.
Nobre patriarca guardião de memórias.
Contador de histórias
Que ainda acontecerão.
Num não demorado dia
Serei nome feliz, gravado em pedra.
E dirão que ali jazia
Alguem cujos feitos não são
Lembrados,
Mas os efeitos ainda são sentidos.
Um dia terei sido.

terça-feira, 4 de outubro de 2016

Sopro

Uma gota de chuva
Um grão de areia
Uma folha que cai
Uma brisa no deserto
Doce, salgado, azedo
Quente, frio e o vento
Uma aurora qualquer
E o por do sol que não vi
O som das asas de um pássaro
Que passou por mim
A mesma estação de sempre
Que nem percebi
Horas, minutos, segundos
Que se esconderam de mim
Gente indo embora
Gente chegando
E eu esperando carona
E um dia melhor
E a morte da saudade
Tudo que não fiz
Mas prometi fazer
Um carinho
Uma refeição
Um banho
Um suspiro
E morremos.